Hemofilia é uma doença genético-hereditária que se manifesta quase exclusivamente no sexo masculino. Caracteriza-se por desordem no mecanismo de coagulação do sangue que pode resultar em hemorragias difíceis de serem controladas.
Existem dois tipos de hemofilia identificados: A e B. O que diferencia um do outro é o fator de coagulação do sangue que os portadores da doença deixam de fabricar. A hemofilia A ocorre por deficiência do Fator VIII, e a B, por deficiência do Fator IX.
A ideia corrente é que os hemofílicos estão sujeitos a hemorragias intensas e sangram até morrer se sofrerem um pequeno ferimento. O mais comum, porém, são os sangramentos espontâneos e frequentes que ocorrem dentro dos músculos ou das articulações e são responsáveis por sequelas que afetam a mobilidade dos membros atingidos.
No passado, hemofilia era causa de morte precoce. Hoje, desde que recebam os cuidados necessários, os portadores da doença têm condição de levar vida saudável por muitos e muitos anos.
CARACTERÍSTICAS DA DOENÇA
Drauzio – O que caracteriza o transtorno genético conhecido como hemofilia?
Ana Clara Kneese Nascimento – Hemofilia é uma doença que se caracteriza pela falta de um dos fatores de coagulação do sangue. Em termos didáticos, pode-se dizer que todos os fatores de coagulação participam da formação do cimento do sangue e que, na falta ou diminuição dos fatores VIII e IX, a cadeia é interrompida e a hemorragia não para, pois são eles que ajudam a formar a casquinha que estanca o sangramento quando nos machucamos, por exemplo.
Vamos comparar as plaquetas a tijolos que empilhamos para construir uma parede. Ninguém ergue uma parede firme sem cimento e, se usar apenas cimento, o processo de secagem será muito lento. É mais ou menos isso que acontece, quando os fatores VIII e IX, responsáveis pela coagulação do sangue, estão ausentes ou em níveis muito baixos: os sangramentos são frequentes e muitos prolongados.
Existem basicamente três apresentações clínicas de hemofilia classificadas segundo a quantidade de fator deficitário. Na forma grave da doença, a porcentagem é baixíssima, menor do que 1%; na forma moderada, varia de 1% a 5%, e a forma leve, às vezes, passa despercebida até a idade adulta. A curiosidade a respeito dessa doença é que, embora seja uma desordem genética e hereditária, afeta praticamente só os meninos.
Drauzio – Pode-se dizer que, na forma leve, o sangramento é um pouco mais prolongado, mas próximo da faixa de normalidade?
Ana Clara Nascimento – Na forma leve, o sangramento ocorre em situações de estresse hemorrágico, como cirurgias, extrações dentárias ou traumas maiores. Se não houver um evento desses, o diagnóstico pode até não ser feito.
Drauzio – Como se manifesta a hemofilia nas formas grave e moderada?
Ana Clara Kneese Nascimento – Nos casos de hemofilia grave e moderada, os sangramentos são espontâneos, em geral articulares, e acabam provocando lesões ósseas que comprometem a vida dos pacientes. Podem aparecer logo no primeiro ano de vida, sob a forma de manchas rochas, as equimoses, e tornam-se mais frequentes quando a criança começa a andar e a cair. Às vezes, o que chama a atenção dos pais é um hematoma que se forma depois de uma punção venosa ou da aplicação de uma vacina.
HERANÇA GENÉTICA
Drauzio – Você poderia explicar por que a hemofilia se manifesta quase exclusivamente nos meninos?
Ana Clara Kneese Nascimento – A hemofilia está ligada a uma herança genética transmitida pelo par de cromossomos sexuais XX. Normalmente, as mulheres têm apenas um deles acometido e o normal promove os fatores VIII e IX da coagulação, em quantidade suficiente. Nos homens, esse par é formado pelos cromossomos XY. Possuindo apenas um cromossomo X, eles não têm como compensar a deficiência e, portanto, a produção desses fatores fica comprometida. Isso explica por que as mulheres podem ser portadoras do defeito, mas são os meninos que manifestam a doença. Embora haja a possibilidade de o pai hemofílico transmitir o cromossomo afetado para a filha, ela não terá a doença, mas poderá passá-lo para os filhos.
A hemofilia pode não se manifestar em várias gerações, se a descendência for apenas feminina e desaparecerá da linhagem se o cromossomo normal, e não o que carrega o gene defeituoso, for transmitido.
Em 30% dos casos, porém, especialmente na hemofilia A, uma mutação espontânea do gene, ou seja, uma mudança inesperada e inexplicável naquele gene, pode ocorrer em famílias sem história da doença. Exemplo desse evento pontual é o da rainha Vitória da Inglaterra, que passou a transmitir o gene da hemofilia apesar de sua família nunca ter apresentado sinais da doença. O problema ficou mais grave, porque os membros das casas reais europeias casavam-se entre si e duas filhas da rainha eram portadoras do gene. O caso mais conhecido é o do filho do czar Nicolau II da Rússia, o único menino depois de várias meninas, que tinha a forma grave da doença. É grande a especulação centrada na figura controvertida de Rasputin e de sua influência sobre a rainha, transtornada com a doença do filho.
Drauzio – Existe alguma explicação para a mulher, que não recebeu nenhum gene específico para hemofilia, num dado momento, apresentar esse tipo de mutação?
Ana Clara Kneese Nascimento – Na literatura médica, não existe referência a nenhum fator ou predisposição que possam justificar tal mutação. Sabe-se que há genes mais instáveis, mais expostos a alterações e há centenas de mutações descritas para o mesmo gene. É possível que vários defeitos em pontos diferentes do gene do Fator VIII levem à hemofilia A.
HEMOFILIA GRAVE
Drauzio – Relembrando: na hemofilia A, há um déficit do Fator VIII de coagulação do sangue e, na hemofilia B, o fator deficitário é o IX. É a quantidade desses fatores no sangue que determina se a doença é grave, leve ou moderada. Quais são as principais características da hemofilia grave?
Ana Clara Kneese Nascimento – Caracteristicamente, são pacientes com repetidos sangramentos intramusculares, que podem ser espontâneos. Atos simples como descer uma escada, pular, cair, que não deixariam sequelas nas pessoas normais, podem provocar sangramentos intra-articulares, ou seja, dentro das juntas dos hemofílicos, que aparecem sob a forma de manchas rochas na pele. Seus sintomas são dor forte, aumento da temperatura e do volume no local e restrição dos movimentos.
Com o passar do tempo, as hemartroses (nome desses sangramentos repetidos) desgastam primeiro a cartilagem e, depois, a parte óssea provocando um quadro chamado de artropatia do hemofílico, ou seja, um comprometimento da articulação que leva à artrose da junta e resulta em desvios, retrações ou encurtamento do membro afetado.
Em geral, a articulação mais comprometida é a do joelho, em razão da carga maior que recebe, seguida das articulações do cotovelo e do tornozelo. As lesões no cotovelo tornaram-se mais comuns, porque as crianças apoiam-se neles enquanto veem televisão ou jogam videogame.
Outros sangramentos que não costumam exteriorizar-se ocorrem na musculatura das costas. Quando acometem o músculo íleo-psoas restringem a movimentação da perna.
Nas formas grave e moderada da doença, situações de trauma, como cortes, extração de dentes ou mesmo perda de sangue pelo nariz (não costuma ser comum), provocam sangramento abundante que demora muito a parar. O mais perigoso, porém, são os traumas em cabeça, porque o sangramento pode ser rápido e volumoso e requer acesso imediato ao tratamento.
SINAL DE ALERTA
Drauzio – Qual o primeiro sinal da doença que deve chamar a atenção dos pais?
Ana Clara Kneese Nascimento – É a ocorrência de sangramentos frequentes e desproporcionais ao tamanho do trauma. Nos bebês, primeiro aparecem as manchas roxas, porque as articulações estão protegidas e não sofrem carga até eles começarem a andar.
Drauzio – O que devem fazer os pais ao notar que, nos primeiros meses de vida, a criança fica com manchas roxas quando bate nas grades do bercinho?
Ana Clara Kneese Nascimento - Eles devem procurar o pediatra. Existem testes de triagem para indicar a presença ou não de hemofilia. Em caso positivo, o próprio pediatra deve encaminhar a criança para o hematologista que pedirá a dosagem dos fatores de coagulação VIII e IX, através de um teste simples de sangue, que não incomoda muito a criança. Os diagnósticos diferenciais não são muitos, mas devem ser feitos, pois são essenciais para a indicação do tratamento.
Drauzio – Feito o diagnóstico, que cuidados devem ser tomados com essas crianças?
Ana Clara Kneese Nascimento – Na primeira infância, é fundamental orientar os pais, porque eles costumam ficar muito aflitos com a situação. Às vezes, as mães são tomadas por sentimento de culpa por se considerarem responsáveis pela transmissão da doença aos filhos.
Se, por um lado, deve-se estimular a criança a crescer normalmente e a fortalecer a musculatura, por outro, é preciso evitar que sofra traumas. Nesse sentido, atualmente, podemos contar com uma série de recursos: cantoneiras para os móveis, brinquedos de plástico, etc. Para crianças um pouco maiores, indica-se a prática regular de exercícios que fortaleçam a musculatura. No entanto, devem ser evitadas atividades como judô, rúgbi, futebol, etc. No Brasil, natação é o esporte conveniente para os portadores de hemofilia, porque ajuda a fortalecer a musculatura sem o risco de impacto articular.
Outra recomendação importante é que, tão logo ocorra a hermatrose, o paciente deve receber o tratamento, uma vez que quanto mais depressa for tratado, menores serão as sequelas causadas pela hemorragia.
Drauzio – Os sangramentos articulares constituem uma patologia frequente e muito limitadora para os hemofílicos.
Ana Clara KneeseNascimento - Basicamente, o objetivo do tratamento é evitar que se desenvolvam as artropatias. Quanto menor o sangramento dentro da articulação, menor será a sequela. Em geral, o hemofílico percebe quando se inicia uma crise porque sente dor no junta acometida pela hemorragia.
TRATAMENTO EM CASA
Drauzio – Quer dizer que dor em junta de hemofílico, até que se prove o contrário, é sinal de sangramento.
Ana Clara Kneese Nascimento – Por isso, o paciente deve ter em casa o fator anti-hemofílico, pois ele pode ser treinado para aplicá-lo em si mesmo. Sentiu a dor, começa o tratamento antes mesmo de procurar atendimento médico, o que deve ser feito também sem demora.
Drauzio – Aplicações de gelo no local ajudam?
Ana Clara Kneese Nascimento – O gelo ajuda e deve ser colocado, no mínimo, três vezes por dia, durante 15 ou 20 minutos, não só imediatamente no início do sangramento, mas até que a hemorragia cesse e o processo regrida. Imobilizar a articulação também é importante para poupá-la da carga. No entanto, sem sombra de dúvida, o fundamental é receber a reposição rápida do fator deficitário.
Drauzio – Imobilizar a articulação da criança por muito tempo não provoca hipertrofia da musculatura?
Ana Clara Kneese Nascimento – Na fase aguda, não há muito o que fazer, além de repor o fator deficitário, colocar gelo no local e fazer repouso. O problema é que esses eventos hemorrágicos costumam repetir-se sempre na mesma articulação, por exemplo, no joelho ou no tornozelo, o que torna o processo crônico com consequente diminuição da musculatura, menor uso da articulação, alterações ósseas e encurtamento do membro afetado.
Por isso, vencida a fase aguda, é importante que o paciente seja encaminhado para a fisioterapia com o intuito de reforçar a musculatura e promover a estabilidade articular, o que ajuda a evitar ou diminuir o número de sangramentos. O tratamento fisioterápico precisa ser orientado por profissionais habilitados que conheçam profundamente as características da doença para não desencadear novas hemorragias.
NOVOS MÉTODOS TERAPÊUTICOS
Drauzio – No passado, era difícil encontrar um hemofílico que não estivesse andando com muletas ou em cadeira de rodas. Esse panorama mudou muito depois que eles passaram a receber tratamento adequado?
Ana Clara Kneese Nascimento – Mudou completamente. Os hemofílicos tinham restrição não só do tempo, mas também da qualidade de vida. Muitos hemofílicos adultos, diagnosticados tardiamente ou que não tiveram acesso cedo aos recursos terapêuticos, apresentam deficiências físicas marcantes: andam com muletas, têm restrição nos movimentos do membro superior, às vezes dos dois braços, não conseguem escrever nem frequentar escolas, o que compromete sua escolha profissional e a qualidade de vida.
Atualmente, o panorama é muito diferente. Crianças hemofílicas acompanhadas desde a primeira infância chegam à idade adulta sem nenhum problema, podendo atuar na sociedade e buscar a realização pessoal como qualquer adulto sem a doença.
Embora a Federação Mundial de Hemofilia estime que diminua em dez anos a expectativa de vida dos portadores dessa desordem na coagulação do sangue, desde que convenientemente tratados, o grande ganho foi a qualidade de vida.
AVANÇOS NO TRATAMENTO
Drauzio – Como evoluiu o tratamento da hemofilia?
Ana Clara Kneese Nascimento – Nos últimos 40 anos, o tratamento da hemofilia evoluiu muito. Basicamente, ele consiste na reposição do fator anti-hemofílico, ou seja, o paciente com hemofilia do tipo A recebe a molécula do Fator VIII deficitário que normaliza o processo de coagulação. Essa molécula existe no plasma das pessoas normais e só começou a ser usada por volta de 1965, quando se desenvolveu o crioprecipitado (concentrado precipitado a frio do Fator VIII). Como a produção desse fator depende de muitos doadores, o risco de doenças transmitidas pelo sangue existia, e os hemofílicos foram especialmente infectados pelo vírus da AIDS e da hepatite C.
Na década de 1980, métodos de inativação de vírus utilizando solvente/detergente e calor reduziram o número desses eventos. A grande conquista, porém, foi obter um concentrado que tivesse a molécula objetivada, por exemplo, o Fator VIII, e um poliliofilizado, o que fez cair muito a contaminação por doenças transmitidas pelo sangue e a criação de anticorpos contra outras moléculas. É um tratamento caro, mas fácil de ser administrado.
Nos casos de hemofilia B, a reposição é feita sempre com o concentrado do Fator IX.
Drauzio – Com que frequência esse medicamento deve ser administrado?
Ana Clara Kneese Nascimento – No Brasil, ele é administrado nas crises, ou seja, o paciente recebe o fator, quando tem sangramento. O Ministério da Saúde fornece a medicação, que é distribuída gratuitamente pelos hemocentros.
Drauzio – No País inteiro, homogeneamente?
Ana Clara Kneese Nascimento – No País inteiro. O objetivo do Ministério é que em todas as regiões, mesmo nas mais interioranas, haja disponibilidade do fator para os hemofílicos. Pacientes treinados para a autoaplicação podem ter em casa o que chamamos de dose domiciliar de urgência. O que não se consegue, ainda, é promover o tratamento profilático, isto é, aquele que ajudaria a prevenir os sangramentos.
Drauzio – Como deve ser feita a autoaplicação?
Ana Clara Kneese Nascimento – A aplicação é endovenosa, idealmente nas veias da mão. Além de aprender como aplicar para evitar um acidente de punção, o paciente precisa saber como preservar o fator respeitando o prazo de validade, as condições ideais de conservação em geladeira, e como desprezar o material e descartar a agulha que não pode ser jogada no lixo doméstico comum.
Aplicar o fator anti-hemofílico é a primeira providência que o paciente deve tomar assim que o paciente percebeu o sangramento. A seguir, deve dirigir-se ao centro hematológico de origem para completar o tratamento, porque uma dose única, em geral, não basta para controlar a hemorragia.
Drauzio – Quanto mais depressa for aplicada a dose no início do sangramento, mais eficaz será o efeito do fator anti-hemofílico?
Ana Clara Kneese Nascimento – Iniciar o tratamento tão logo perceba o sangramento é o que faz diferença na evolução do quadro. Não traz nenhum benefício esperar dois dias fazendo aplicações de gelo. O ideal é receber o fator deficitário logo que começa a hemorragia.
Drauzio – No Brasil, esperamos o incêndio começar, para correr a fim de apagar o fogo. De que forma deveria ser administrado o fator no hemofílico que está saudável para prevenir os sangramentos?
Ana Clara Kneese Nascimento – As doses teriam de ser diárias, o que geraria um custo que nem os países ricos conseguem suportar. Todavia, são administradas doses profiláticas se o paciente for submeter-se a procedimentos cirúrgicos, extração dentária ou outro evento que possa provocar sangramentos.
Drauzio – Os hemofílicos podem ser operados quando necessário?
Ana Clara Kneese Nascimento – Podem submeter-se a procedimentos cirúrgicos como qualquer outra pessoa, mas exigem cuidados. Além da reposição preventiva do fator, há outras substâncias que o cirurgião experiente sabe usar como selantes.
Drauzio – Podemos dizer que os fatores anti-hemofílicos estão disponíveis e que deveriam ser administrados no exato instante em que começa o sangramento. Se isso não for possível, quanto tempo pode esperar o paciente para iniciar o tratamento?
Ana Clara Kneese Nascimento – Não se tem esse número, porque o sangramento cessa com a aplicação do fator que deve ser tomado tão logo o paciente tenha acesso ao medicamento. O ideal seria que isso ocorresse dentro de, no máximo, uma hora, pois quanto mais demorar, maior será o sangramento e a inflamação das juntas.
A insistência em recomendar aplicação o mais rápido possível tem como objetivo evitar as sequelas crônicas que comprometem a qualidade de vida dos portadores de hemofilia.
Dra. Ana Clara Kneese Nascimento é médica, especialista em Hematologia pela Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia (SBHH), e faz parte do corpo clínico do Serviço de Hematologia da Santa Casa de São Paulo e do Centro de Hematologia de São Paulo.
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