O intestino é constituído por duas partes: o intestino delgado e o intestino grosso. O delgado (formado pelo duodeno, jejuno e íleo) estende-se do piloro – válvula que separa o estômago do duodeno – até a junção íleocecal, onde começa o intestino grosso, que vai desembocar no reto.
Muita gente se queixa de problemas intestinais. São cólicas intermitentes, gases que provocam distensão do abdômen, crises alternadas de prisão de ventre e diarreia, sensação de que o intestino não foi esvaziado completamente com a evacuação. Esses sintomas são comuns a muitas doenças intestinais. Uma delas é a síndrome do intestino irritável, um distúrbio funcional, sem causa anatômica nem lesões que o justifiquem. Por isso, seu diagnóstico é de fundamental importância para excluir a possibilidade de moléstias graves.
No passado, a síndrome do intestino irritável era atribuída apenas a alterações emocionais. Hoje se sabe que o intestino tem enervação própria e hormônios que regulam sua capacidade de excretar.
NOMENCLATURA E CARACTERIZAÇÃO
Drauzio – Irritável não é um termo que se use em medicina. O que ele significa na expressão “intestino irritável”?
Flavio Steinwurz – Os sintomas da síndrome do intestino irritável eram atribuídos a alterações emocionais do portador e caracterizavam um distúrbio chamado de colite nervosa. Veja que a palavra colite era empregada erradamente nesse caso. O sufixo “ite” indica inflamação. Como a síndrome do intestino irritável é um evento funcional que, ao contrário das doenças orgânicas, não apresenta lesões nem inflamação, não poderia ser chamada de colite.
Então, passou a ser usada a expressão síndrome do cólon irritável. Síndrome, porque não é uma doença, mas um conjunto de sinais e sintomas que se manifestam predominantemente no cólon que pareceria, por assim dizer, irritado, nervoso. Mais tarde, porém, verificou-se que o problema estava relacionado com ondas peristálticas anormais e que a falta de coordenação motora não acomete só o cólon, mas outras partes do tubo digestivo. Diante disso, para sermos precisos, a síndrome deveria ser chamada de esofagogastroenterocolopatia funcional, nome complicado demais.
Na língua inglesa, essa síndrome é conhecida como Irritable Bowel Syndrome. Bowel significa tripa. Ora, chamá-la de “síndrome da tripa irritadiça” também não parecia uma escolha adequada. Por isso, optou-se por síndrome do intestino irritável, nomenclatura mais de acordo com a que existe mundialmente sobre o assunto.
Drauzio – A coordenação motora do intestino é absolutamente necessária para fazer o bolo fecal progredir nos intestinos. Ela depende não só de estruturas anatômicas (músculos, mucosas, etc.), mas de mediadores químicos que vão agir nas fibras musculares provocando contrações. Esses mediadores são semelhantes aos liberados pelo sistema nervoso central, a ponto de, em medicina, o intestino ser considerado um segundo cérebro. Qual a relação entre as alterações emocionais e a motilidade do intestino?
Flavio Steinwurz – No passado, achava-se que o problema era puramente emocional. Hoje, sabemos que o intestino tem um segundo cérebro representado por mediadores e um sistema nervoso próprio. Sabemos também que a região do hipotálamo no cérebro, entre outras funções, é responsável pelo impulso das emoções e tem ligação direta com o sistema nervoso autônomo simpático e parassimpático. Sabemos, ainda, que o principal nervo do sistema parassimpático, o nervo vago, enerva todo o tubo digestivo. Ele estimula a secreção de ácido, de enzimas, de fatores digestivos e coordena a movimentação do intestino. Além disso, há cerca de cinco anos, descobriu-se que existem hormônios e receptores para esses hormônios localizados no tubo digestivo, similares àqueles encontrados no sistema nervoso central e que são chamados de encefalinas, por analogia a encéfalo (cérebro). Portanto, o tubo digestivo possui enervação própria e hormônios que regulam sua motilidade e capacidade de secretar. Tudo isso nos permite afirmar que existe relação direta entre a emoção integrada no hipotálamo e a motilidade do intestino.
SINTOMAS
Drauzio – O que interfere na motilidade do intestino?
Flavio Steinwurz - O movimento peristáltico caracteriza-se por um conjunto de contrações musculares dos órgãos ocos e tem por finalidade juntar o bolo fecal e fazer uma varredura no intestino, provocando o avanço do conteúdo ali existente. De forma coordenada, ocorrem contrações e relaxamentos sucessivos da musculatura lisa que empurram o bolo fecal para baixo para que seja expelido.
No intestino irritável, essa coordenação está defeituosa e não promove o movimento propulsivo adequado. O esforço que o intestino faz para eliminar o que está retido dentro dele acarreta um estímulo grande em suas paredes e provoca, num primeiro momento, prisão de ventre e, depois, evacuações de fezes fragmentadas, em pedaços, muitas vezes amolecidas, de calibre pequeno pela contração excessiva, assim como alternância das crises de obstipação e diarrea.
Drauzio – Que sintomas provoca a descoordenação do movimento peristáltico?
Flavio Steinwurz - Os principais sintomas são dor e desconforto causado pelo acúmulo excessivo de gases. Muitas vezes, no fim do dia, o indivíduo é obrigado a abrir o cós da calça, porque sente a barriga estufada. Além disso, pode ter tanto intestino preso como intestino solto, ou ambos alternadamente, dependendo da irritação que as alterações da motilidade intestinal tenham provocado.
Drauzio – Há alguma relação entre esses sintomas e as refeições?
Flavio Steinwurz – A refeição é um estimulante do movimento intestinal, de um movimento de massa desencadeado pelo reflexo gastrocólico. Ou seja, quando o alimento chega ao estômago, através de hormônios e estímulos nervosos, é enviado um comando que estimula as contrações e provoca aumento na motilidade do intestino. Como esse reflexo é tanto maior, quanto mais longo for o período de jejum que antecedeu a alimentação, normalmente, ocorre pela manhã, depois de uma noite inteira de jejum.
Na síndrome do intestino irritável, o reflexo gastrocólico e o movimento de massa estão exacerbados. Por isso, as manhãs são difíceis, porque aumentam os reflexos e, consequentemente, aumenta a necessidade de evacuar. Em cerca de 70%, 80% dos casos, os portadores da síndrome têm diarreia e evacuam várias vezes depois do café da manhã.
DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Drauzio – Um dos problemas da síndrome do intestino irritável é que os sintomas são comuns aos de muitas doenças do intestino. Um deles é a alternância de obstipação e diarreia, que aparece também nos casos de câncer de intestino. Flatulência, dor, alteração na consistência das fezes podem ser sinais de doenças inflamatórias como a retocolite ulcerativa e a doença de Crohn. Quais os cuidados necessários para não confundir os sintomas da síndrome com os de outras doenças mais graves?
Flavio Steinwurz – É muito importante diferenciar a síndrome do intestino irritável de uma doença orgânica. Caso contrário, poderemos passar por cima de problemas sérios que exigem tratamento específico.
O diagnóstico da síndrome leva em conta os sintomas e é feito por exclusão. Se o indivíduo tem menos de 50 anos, fez exames de atividade inflamatória, exames de sangue que não revelaram perda de ferro e anemia, exame de fezes para detectar se o sangue oculto é negativo, se não existir histórico familiar de outras doenças intestinais, pode-se tentar o tratamento com drogas para intestino irritável e observar. Se não houver melhora, o paciente deve ser encaminhado para colonoscopia.
No entanto, se ele tiver mais de 50 anos, se o exame de sangue oculto nas fezes for positivo e houver histórico familiar de outras doenças do intestino, a colonoscopia será prescrita imediatamente para excluir a possibilidade de uma doença orgânica grave. Como se vê, o diagnóstico de intestino irritável é feito ao excluirmos patologias mais graves.
Drauzio – Quanto tempo se pode esperar pela resposta ao tratamento com drogas para a a síndrome do intestino irritável?
Flavio Steinwurz – O tempo é curto. Não mais do que um mês. Se nesse tempo o indivíduo não responder ao tratamento, será encaminhado para a colonoscopia.
Drauzio – Lembrando que a colonoscopia é um exame feito com um tubo flexível e elástico que permite ver por dentro todo o intestino grosso e uma parte do intestino delgado, se o resultado for normal, você se tranquiliza?
Flavio Steinwurz – Na verdade, não, porque ainda existe a possibilidade de haver alguma alteração na parte do intestino delgado que o aparelho de colonoscopia não alcança. Num primeiro momento, porém, o exame dá certa tranquilidade e permite tentar o tratamento para a síndrome do intestino irritável. Caso os sintomas persistam, a investigação das causas prossegue. Avalia-se o intestino delgado para verificar se não existe algum problema na absorção dos alimentos ingeridos – o paciente é intolerante à lactose, por exemplo – ou existe um problema relacionado com o próprio intestino. Para tanto, pede-se um exame de raios-X de trânsito intestinal para examinar o intestino delgado inteiro e diagnosticar dificuldades com as enzimas pancreáticas ou a doença celíaca provocada por alergia ao glúten.
TRATAMENTO
Drauzio – Depois que se chegou à conclusão de que o problema é mesmo funcional e ligado à motilidade do intestino que não ocorre de forma adequada para a progressão do bolo fecal, o que se faz?
Flavio Steinwurz – Primeiro, tento tranquilizar o paciente, dizendo-lhe que a síndrome do intestino irritável é a patologia intestinal mais prevalente no mundo, até porque a tendência, hoje, é classificar a constipação crônica como síndrome do intestino irritável..
Drauzio – Se incluirmos na síndrome todas as pessoas que têm prisão de ventre, metade da população teria a síndrome, pois praticamente todas as mulheres se queixam desse problema.
Flavio Steinwurz – Estima-se que 40% da população mundial tenham a síndrome, um número absurdo, de fato. Mas, em geral, a pessoa fica mais tranquila quando sabe que não é portadora de uma doença orgânica, que não existem lesões e não precisa ser operada.
Drauzio – Qual é, então, o objetivo do tratamento?
Flavio Steinwurz - O objetivo do tratamento é controlar o movimento do intestino e recuperar sua coordenação motora normal. Isso pode ser conseguido com orientação alimentar e medicamentos.
Alimentos ricos em fibras solúveis e insolúveis favorecem a formação adequada de um único bolo fecal. Na grande maioria das vezes, porém, a pessoa precisa também de medicação para controlar a motilidade fecal, quer seja pela ação de hormônios, quer seja por ação direta na movimentação do intestino. Apenas alguns poucos pacientes necessitam de remédios que rompam o vínculo entre alterações emocionais e funcionamento dos intestinos.
Drauzio – Quais são as fibras solúveis e quais são as insolúveis?
Flavio Steinwurz – Fibras solúveis são as que formam e compactam o bolo fecal. Normalmente, são encontradas em polpas de frutas e em alguns cereais. Já as insolúveis formam o bolo fecal, mas não têm o poder de compactá-lo. Funcionam mais como laxante e estão presentes nas cascas das frutas e de cereais e em todas as verduras.
De acordo com a tendência a apresentar constipação ou diarreia, os portadores da síndrome do intestino irritável serão orientados a ingerir mais fibras solúveis ou mais fibras insolúveis.
Drauzio – Que alimentos devem ser evitados?
Flavio Steinwurz – O leite e seus derivados, por exemplo. Na verdade, 70% da população acima dos 60 anos já desenvolveram certo nível de intolerância à lactose, ou seja, ao açúcar do leite, que fermenta e intensifica a produção de gases. Isso favorece a distensão do abdômen a tal ponto que o indivíduo é obrigado a abrir o cós das calças no fim do dia.
Drauzio – Como resolver esse problema se leite e derivados são importantes fontes de cálcio especialmente para a população de mais idade?
Flavio Steinwurz – Existem leites especiais, com baixo teor de lactose e o mesmo teor de cálcio dos leites convencionais.
Drauzio – Existem outros alimentos que também devem ser evitados?
Flavio Steinwurz – Devem ser evitados alimentos que irritem os intestinos, como condimentos picantes e produtos com excesso de conservantes. Como o sal grosso tem efeito osmótico e aumenta muito o fluxo de água para dentro dos intestinos, favorecendo a irritação intestinal, está na lista do que deve ser evitado. Da mesma forma, desaconselha-se a ingestão excessiva de açúcar, principalmente de doces muito concentrados, como brigadeiro, quindim, leite condensado.
Drauzio – Quem tem a síndrome do intestino irritável consegue levar vida normal, sem tomar remédio nem passar por fases de grande desconforto?
Flavio Steinwurz – É muito difícil. Em geral, os portadores da síndrome precisam de remédio. Isso não quer dizer que o uso de medicamentos deva ser crônico e contínuo, como acontece com outras doenças do intestino. Eles podem ser prescritos nas fases de maior desconforto, por não mais do que um ou dois meses.
É evidente que o indivíduo com propensão para manifestar a síndrome, depois de alguns anos sem manifestações clínicas, por fatores emocionais ou algum distúrbio na motilidade intestinal, pode voltar a apresentar os sintomas e ser obrigado a retomar o tratamento.
**Flavio Steinwurz é médico gastroenterologista, presidente da Associação Brasileira de Colite Ulcerativa e Doença de Crohn (ABCD), diretor do Departamento de Gastroenterologia da Associação Paulista de Medicina, integra o corpo clínico do Hospital Albert Einstein.
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